Concordo que Auschwitz seja um paradigma sobre o problema da modernidade para a filosofia ocidental, mas tenho me perguntado nesses últimos dias se para os filósofos, não só para os brasileiros e latinoamericanos, nossos genocídios não são importantes paradigmas para se fazer filosofia? Será que 500 anos de genocídio dos povos originários não são um problema filosófico relevante? Será que 300 anos de escravidão do povo negro não é um problema em se levar em conta? Será que nossas décadas de ditaduras militares não são importantes problemas para a filosofia? Será que nossas milhares de vítimas de sistemas opressores não são importantes para lançar um olhar sobre o problema da razão, do direito, da ciência, do poder e até da ontologia, epistemologia, metafísica? Salvo as muitas exceções de filósofos e demais pesquisadores e estudiosos que se debruçam sobre esses estigmas há anos, ainda me faço essas questões como forma de pensar em quão atuais elas ainda nos são, de como elas formam nossa realidade nos detalhes e também nos arranjos estruturais da sociedade brasileira e latinoamericana. Ainda hoje os indígenas são assassinados pelo simples fato de serem indígenas, isso não nos diz algo sobre a anulação do outro, sobre a extinção do outro, sobre a banalidade do mal por exemplo? Isto é, existe um paralelo possível entre as questões suscitadas pelo genocídio do holocausto judeu e os nossos genocídios. Existe um ponto comum entre as consequências dos projetos de modernidade sobre os povos americanos e africanos com o extermínio nazista do povo judeu. Isso sem escala de importância, pois são irmãos em suas tragédias. Mas não seria possível pensar as reservas indígenas sob o mesmo paradigma do campo de concentração? Pois o problema que torna Auschwitz o ponto de ruptura que faz filósofos como Adorno e Agamben lançarem a questão de como pensar ou viver depois de Auschwitz, é um problema que vem ocorrendo nas Américas e na África desde o século 16 ininterruptamente. Isto é, uma solução final, um extermínio perpetrado em nome da civilização, em nome do progresso, sem falar em nome do capital. E a mediação do capital, da exploração das riquezas naturais e humanas dessas terras é colocada quase como uma desculpa que justifica esses crimes como se estes não fossem motivados pelo ódio puro e simples. Apenas os nazistas odiaram suas vítimas, as vítimas dos outros foram apenas contingências da ganância dos exploradores. No fundo, negros e indígenas foram objetos exóticos que sequer foram alçados à categoria de humanos em plena igualdade enquanto vítimas. E se os judeus foram anulados enquanto humanos por seus algozes nazistas, o povo negro e indígena não chegou a esse ponto por seus dominadores europeus. Então a pergunta que me faço é, como viver depois do extermínio negro e indígena? Como pensar a educação depois da escravidão? O que resta do humano depois do racismo? Parecem questões que levam ao problema de que não é Auschwitz que funda o imperativo político-moral que vivemos, mas foi a dominação desses povos que fez Auschwitz possível.
Somos os filhos da Revolução. Somos burgueses sem religião. Somos o futuro da nação.
11 dezembro, 2017
19 novembro, 2017
19 de novembro de 2017
Fazemos um esforço muito grande para não decepcionar as pessoas, mas eventualmente isso irá acontecer e a vida é um constante pisar firme sobre todos os ovos. Quer dizer, não há ovos intactos e somos seres falíveis em tudo, por mais óbvio que isso seja e por mais difícil seja incorporar essa mentalidade em nossos modos de viver. Sempre que se aproxima o final do ano, e parece que esse ano não acaba nunca, pensamos em todos os possíveis que não realizamos, todos os erros que cometemos ou deixamos de cometer, lembramos toda dor e angústia de um ciclo tal como os outros. E como seria mais fácil viver dentro de uma programação que obedecesse toda a previsibilidade de viver sem riscos, sem dor, sem sofrimento, sem a torturante dúvida do dia de amanhã. Por isso criamos mapas, céus, cartas que nos guiam nessa escuridão do viver uma vida que contranaturalmente nos joga na solitária e dura realidade de sermos livres como seres humanos para construir e criar nossos próprios sentidos, como se isso nos afastasse eternamente de qualquer herança selvagem, qualquer herança animal predisposta, qualquer instinto inevitável de seguirmos os caminhos do destino, qualquer destino. E assim trocamos rotas, trocamos trocamos veredas e desejos.
04 novembro, 2017
4 de novembro de 2017
O trabalho intelectual é sobrevalorizado quando se trata de crises existenciais e filmes indie. É sempre um sujeito que está no meio de uma crise e escreve um romance. Penso que as funções terapêuticas das enxadas são menosprezadas nesses casos. Eu mesmo, no meio de um episódio depressivo profundo, faço uso da enxada para me livrar das ervas daninhas do meu pequeno lote de terra no subúrbio.
23 outubro, 2017
23 de outubro de 2017
Curioso o cinema ter nascido mudo e a palavra habitar uma trama de gestos e expressões. E se fosse o contrário, e o cinema habitasse a palavra como que criando casa nas vírgulas e assentos? E se se tocasse a tela como quem toca o papel cheio de ranhuras e rasuras de palavras recém traçadas?
06 agosto, 2017
06 de agosto de 2017
Tudo que eu já fiz foi invencionice e muito dessas coisas já não são tão reais como foram no momento em que as escrevi. Com todo tipo de erro e superficialidade, rever as coisas que já fiz me servem pra me colocar numa saudável posição de ignorante e crítico de mim mesmo. Quando escrevemos nos enchemos de um bom orgulho e narcisismo de quem quer pegar o mundo todo na mão, mas também é bom ver depois quantos dedos faltavam para fazer isso. Tenho notado como meu processo criativo é diferente nas diferentes coisas que faço. De como me deixo tomar por certo impulso criativo meio associativo meio catártico quando escrevo um poema ou uma reflexão. Ou de como faço um esforço muito grande para escrever um material acadêmico, esforço que desconhecia tão intensamente antes de começar a pós-graduação. Por isso as faltas, as incompletudes, os defeitos de quem começa uma coisa nova sempre. Parece que quando escrevo coisas desse tipo sempre escrevo como se fosse a primeira vez, porque nunca sei o que é pra fazer, como começar e pra onde quero ir. Não aprendi os modelos e me esforço pra me encaixar a eles por uma obrigação que por muitas vezes desconheço. E as razões que a motivam também me são desconhecidas, porque adaptar-se vem sempre antes de incomodar-se. E quando se percebe o quanto se está incomodado com alguma coisa, aí que se percebe uma presença que antes se ignorava. É como quando se nota uma pedra no sapato só depois de começar a andar. Sendo que muitas vezes se anda o caminho inteiro com o incomodo da pedra por vergonha de parar no meio do caminho, aos olhos de todo transeunte. Por isso admiro quem tira o calçado e começa a andar de pé no chão. Talvez por isso eu tenha demorado pra aprender a amarrar os sapatos e hoje viva com os nós já dados pelo conforto de só enfiar o pé. E quando se demora pra aprender alguma coisa num tempo que cobra pelos atrasos, se aprende quase como de um jeito próprio uma tarefa comum mas sútil.
04 agosto, 2017
Sujeira, 04 de agosto de 2017
Tudo é sujeira, pó e matracas.
Tudo é lixo, pingentes e brilhantes.
Só resta armadilha, fedor e leite rançoso.
Puritano nem é gente que se preze,
pra começar uma conversa.
Começa com sopro e termina com golpe.
Puritano nem é gente que se limpa direito,
está sempre sujo e fedorento.
Fedor de sangue, sêmen e bruxaria.
Tudo é lixo, pingentes e brilhantes.
Só resta armadilha, fedor e leite rançoso.
Puritano nem é gente que se preze,
pra começar uma conversa.
Começa com sopro e termina com golpe.
Puritano nem é gente que se limpa direito,
está sempre sujo e fedorento.
Fedor de sangue, sêmen e bruxaria.
31 julho, 2017
31 de julho de 2017
Quanto mais rígidos os limites, mais forte é o impacto de uma força contrária. Porém, quanto mais esfumaçados são esses limites, maior o estrago para recompor as mesmas formas após o impacto. Muito se diz sobre resiliência e talvez pouco se entenda o sentido que está por trás dessa ideia. Sendo a resiliência a propriedade de um corpo retomar a mesma forma após o trauma, pode-se dizer que a agressão a esse limite só o faz tomar a mesma forma após o episódio. Isto é, a rigidez dos seus limites faz com que a sua forma seja recuperada mesmo após um impacto, porque a identidade desses limites se vê, de certa forma, resguardada das forças desses impactos. Contudo, quando se pensa na porosidade desses limites, quando se pensa na maleabilidade de sua indeterminação, é possível supor que o impacto sempre provoca uma nova forma, porque a forma anterior não era, por assim dizer, uma ordem unívoca. Isto é, seus limites não compunham uma totalidade que engolfasse os impactos como recuperação de si mesmo, pois não é possível rememorar as suas formas anteriores, senão partir para a formação de outras formas por vir. Mas aqui a ideia não é a falta de formas que excluem uma certa consistência, mas diz respeito a quebra e a remontagem dessas formas conforme a rigidez dos seus limites. Bom, talvez minha percepção esteja enganada e seja isso tudo o contrário conforme a física. Mas o meu ponto surge quando me deparo com a dificuldade, num exercício de "problematização", "desconstrução", de remontar outras formas a partir dos impactos da critica a essas estruturas enrijecidas. Isto é, - e aqui eu não estou usando nenhum conceito foucaultiano ou derridiano mas a ideia de crítica e de desmonte de estruturas conservadoras que costumeiramente ouvimos falar - o problema é de como essas práticas de problematizar e desconstruir atingem o limite contrário de sua capacidade de crítica quando ao problematizar e desconstruir identidades, se aferram ainda mais fortemente a outras identidades contrárias contra-identificadas na tentativa, um pouco superficial, de atingir uma certa radicalidade.
Parece que a tentativa de alcançar uma radicalidade acaba por dar de cara com certo radicalismo autocentrado em sua própria identidade que determina, por oposição, o seu outro antagônico. Quer dizer, aqui a raiz - aquilo de mais profundo e basilar que expõe a fundação dessas formas, isto é, aquilo que sustenta desde a base o que engendra essas formas, se torna por um simples jogo de oposição, o reflexo negativo daquilo que sustenta a sua própria existência. Talvez aqui a crítica latente seja a uma concepção de dialética, mas não foi essa a intenção no início disso, embora haja uma dialética operando quando se delimita esses antagonismos como formas de autopreservação das identidades. Opor-se seria aqui identificar-se com o seu contrário na necessidade de afirmar a sua própria existência. Quando transportamos esse pensamento para a clínica, o que temos é a ideia de uma existência que se torna codependente de outra para a sua manutenção.
30 julho, 2017
30 de julho de 2017
O dia que eu ver uma galera de esquerda com um fuzil nas costas, daí que eu vou dizer que se lacrou alguma coisa. Eu costumo brincar que tanto se dizia que o fascismo não passaria que os fascistas passaram por cima com tanquea ignorando qualquer resistência. Tenho feito muito pouco ativismo nas redes sociais, muito por estar cansado dos discursos. Está tudo meio merda e eu vou ser só mais um incongruente que não toca uma pedra na cara da repressão. Enfim, uma vez eu vi uma pessoa dizendo, "pena que eu não estou aí, porque se tivesse fazia e acontecia". Mas tenho as minhas dúvidas se a pessoa em questão faria alguma coisa mesmo ou só falava isso do conforto de estar longe demais para tal atitude. O negócio é que estão cagando e mijando na cabeça de todo mundo e algumas pessoas aqui preocupadas com a ditadura do Maduro. Se a direita se organizou para dar um golpe aqui e retomar o poder dos governos bolivarianos, por que isso seria diferente na Venezuela? Onde o Chavismo enfrenta essa mesma resistência há mais de década. Isso me faz lembrar de um documentário sobre o PCB e a ruptura provocada por Marighella, onde era lembrado que este resolveu tomar uma atitude mais radical porque estava cansado das constantes discussões e debates sobre o golpe. Como já disseram alguma vez, é importante conspirar, mas o problema é que essas conspirações estão provocando cada vez mais desacordos, desencontros e por causa de quê? Egos, egos muito grandes, egos do tamanho do Maracanã e que fazem todos surdos e sedentos por poder. E nem digo grandes poderes, falo de pequenos e minúsculos poderes, como o poder de dormir à noite com o ressentimento saciado. Um bando de ressentidos isso sim, esquerda ressentida. Olha lá a ditadura do Maduro, que ataque aos direitos humanos, diria alguns militantes fervorosos enquanto os tanques dos fascistas esmagam os seus próprios ossos do lado de cá30. Tem uma cena muito boa num filme onde a moça coloca uma flor na ponta do fuzil e o soldado dispara, provavelmente matando-a. É isso que é o fascismo, nada de flor e marijuana, é tiro, porrada e bomba. Mas vamos preservar os DCEs, as violas e Caetano, talvez assim a revolução dos povos aconteça desde as periferias. Alguém disse, a esquerda saiu das vilas e as igrejas evangélicas assumiram. Totalmente verdade, aqui mesmo no meu bairro tem mais igreja que farmácia e talvez mais que boca de fumo. Agora o Deus é outro e tem gente ainda tentando matar o pai primitivo. Porém, não querem muito dividir esse poder, esse projeto de poder, porque ninguém mais o merece tão bem assim, e assim os tanques desfilam numa parada de niilismo e sexo anal. Mas não me deem bola, como disse, é só mais um incongruente com medo de fuzil.
28 junho, 2017
Bagaço rimado, 28 de junho de 2017
Escolhesse ocupar o
espaço.
Escolhesse o fino do
traço,
que se perdia na força
do braço
quando não por acaso
pensasse
que era o fogo o fio do
embaraço.
Pensasse em atravessar
a ponte,
em saltos que
edificasse
mas por dentro só há
fome
e da carne seca só o
bagaço.
Experimentasse qualquer
forma oculta
de força há, quilo
recusasse.
Porém, ficasse ao
relento
à espera só do tempo
que aos poucos se
levantasse.
23 junho, 2017
Oculto, 23 de junho de 2017
E se falássemos do oculto, se falássemos daquela pequena parcela de história que se come pelas beiradas como se preservássemos no centro todo o calor e a intensidade dos sabores? E se nesse intervalo de tempo, entre o gozar e o perder-se na narrativa, pudéssemos estar afogados numa atmosfera de vibrações que no início não pareciam mais que gestos obtusos de figuras díspares da imaginação? E se pudéssemos construir uma espécie de marco que ao restringir aproximasse ainda mais os ouvintes do centro doce dessa atmosfera recalcitrante? E se o olhar fosse apenas o retorno oblíquo de algo perdido num redemoinho de experiências etéreas e confusas sob a particularidade do sonho? E se os dias e as noites se completassem ao hemisfério oculto do ser? E se cada porta ou janela não fosse mais do que o reflexo da transparência atravessada das cores um tanto desbotadas e fragmentadas de objetos cotidianos? E se pudéssemos tocar o ar como se tocam as nuvens de tempestade numa tarde sufocante de um domingo monótono?
05 junho, 2017
05 de junho de 2017
Dizer que um partido político precisa fazer a sua autocrítica parece algo coerente de se dizer politicamente, principalmente se nós nos supomos sujeitos capazes de auto-análise. Mas será que um partido, entendido como uma instituição auto-regulada, é capaz de fazer este movimento de crítica interna de si mesmo? Quando falamos em autocrítica, no sentido individual, supomos que o sujeito em questão é capaz de questionar suas condutas, avaliar seus pensamentos, refletir sobre suas atitudes e planejar, conscientemente, estratégias de mudanças daquilo que não está de acordo ou que causa algum sofrimento pra si ou para o outro. Mas quando falamos de partidos políticos, o que pensamos quando levantamos esse argumento da autocrítica? E o que desejamos que, aquele partido consciente de seus problemas, faça enquanto um movimento de autocrítica? Levanto esse ponto por uma critica apenas, que é a de que um movimento de autocrítica, de auto-análise, de reavaliação de suas decisões é algo simples e corriqueiro que tanto pessoas quanto instituições fazem constantemente. Se isso fosse algo tão corriqueiro, podíamos dispensar psicólogos, psicoterapeutas, psicanalistas, porque esse processo seria inerente e, por assim dizer, auto-gestionado pela pessoa. Talvez aqui eu não esteja levando em conta que aqueles que pedem a autocrítica de partidos levam em consideração a dificuldade inerente de tal empreitada, tanto no aspecto individual quanto no institucional.
Mas, na minha opinião (vejam bem, é uma opinião, com alguma reflexão, mas mesmo assim tão superficial quanto uma opinião leiga), aqueles que pedem autocrítica o fazem por um motivo moral, por um movimento de, ao exigir a autocrítica, o indivíduo ou partido se moralize. Isto é, que reveja seus problemas, suas atitudes, suas deficiências e busque melhorá-las. Logo, aquele que pede a autocrítica de algum partido político, considera a moral algo importante para o jogo político institucional e deseja que, ao menos em tese, mesmo os seus adversários ou simpatizantes levem isso em consideração como estratégia de atuação política. Embora eu acredite que aspectos ético-morais não sejam despregados da atuação política como um todo, penso que o ponto levantado sobre a necessidade de um partido fazer a sua autocrítica deposita demais nesses partidos algo - que por um determinado ponto de vista atual - pelo qual esses nem se abalam. Quer dizer, temos alguns exemplos bem divulgados de problemas morais na política brasileira que não têm abalado, ao menos estrategicamente, partidos ou governos. No caso do governo federal, parece que a legitimidade moral dos seus membros é algo acessório e até invertido para o caso de alguma alocação de cargo de ministro.
07 maio, 2017
Amianto, 07 de maio de 2017
Árvores e aves de amianto, câncer certo de cidade.
Paladinos, feitiços e amores, concreto seco e cigarro,
uma folha verde de espanto.
Paladinos, feitiços e amores, concreto seco e cigarro,
uma folha verde de espanto.
Fendas, navalhas e acentos,
futuro dilacerado pelo passado, administração pública do delírio.
futuro dilacerado pelo passado, administração pública do delírio.
10 abril, 2017
Fósforos, 10 de abril de 2017
Imaginem uma caixa de fósforos, com todos os seus palitos de fósforos. No meio dos palitos retos, há um palito torto. Imaginem uma caixa de palitos de fósforos onde tem um palito torto. É um palito como todos os outros palitos, mas é torto. Ele tem a mesma função dos outros palitos, tem o mesmo fim dos outros palitos, mas é torto. Se riscá-lo ele vai acender tão perfeitamente quanto os outros, não vai quebrar, não vai falhar, mas ele é um palito torto. Numa caixa onde todos os palitos são iguais, existe um palito torto. Claro que nem todos os palitos são iguais, eles têm lá suas pequenas diferenças, suas ínfimas diferenças. Mas olhando assim por cima são todos palitos semelhantes, são todos palitos iguais. Uma pequena diferença aqui, outra ali, mas nenhuma como a do palito torto, que é igual a todos os outros no seu fim de queimar, mas é um palito torto. A questão não é sobre a diferença ou a igualdade entre os palitos. A questão é a caixa. Dentro da caixa o palito torto tem o seu lugar junto aos outros palitos. Dentro da caixa os outros palitos o acolhem, se ajuntam a ele, se arrumam ali com ele, mas ele é um palito torto. De todos os palitos retos existe um que é torto, essa é a fábula. Ele não é um palito rebelde, um palito desviante, ele é apenas um palito torto. Um palito como todos os outros palitos no fim de acender uma chama. Foi um defeito da máquina que produz palitos ou um defeito da madeira de que são feitos os palitos, mas naquela caixa de palitos de fósforos veio um palito torto.
27 março, 2017
LOUCURA E PARRESÍA ENTRE A ÉTICA E A POLÍTICA:
APONTAMENTOS PARA O DELÍRIO COMO DISCURSO CRÍTICO A
PARTIR DE
MICHEL FOUCAULT
Ensaio
de defesa
Quem profere um discurso se arrisca. Desde a aula inaugural de Michel Foucault no Collège de France em 1970, A ordem do discurso, esse horizonte dos discursos nos coloca diante da questão do desejo e da coragem de quem aposta no discurso a própria vida. Através dos discursos criam-se materialidades arriscadas, abre-se um jogo de resultados indeterminados onde os efeitos do discurso são sempre desconhecidos antes de sua enunciação. A vida, nesse caso, é uma aposta nesse jogo enquanto uma ética da coragem, ética do dizer a verdade perante si e aos outros. Como coragem na direção existencial de si e dos outros, esta perspectiva ética e também política desafia o poder, desacata-o, joga com esse risco – esta é a perspectiva discursiva presente nos últimos cursos dados por Michel Foucault antes de sua morte, cursos que marcam uma preocupação do filósofo francês com a liberdade dos discursos de verdade, liberdade das práticas de subjetivação, liberdade das relações políticas que são determinantes para uma postura corajosa da filosofia.
É assim que começa o meu ensaio de desejo, de coragem e de certo desacato como o do louco e do cínico. Um trabalho de ensaio para além exegese da obra foucaultiana, mas que pelas suas margens, busca um respiro dessa liberdade parresiástica para ainda falar de loucura quando imaginamos já ter sido dito tudo do que deveria ser dito sobre a mesma.
Se for possível medir a vida através de resultados, acredito estes resultados não seriam avaliados em termos de sucessos ou de fracassos, mas sim pelo quanto de verdade esses resultados carregam. Os resultados da vida seriam medidos pelo tanto de coragem em afirmar a verdade manifestada por suas atitudes diante de si mesmo. E a verdade, nesse caso, seria a comprovação de algo verdadeiro perante aquele que a afirma diante de si e dos outros em uma atitude ética e política no mundo. Para afirmar tal verdade, é preciso ter a coragem diante dos riscos que tal atitude carrega, diante do jogo indeterminado de vida e de morte que apenas uma atitude honesta e corajosa pode afirmar. Dizer a verdade sobre si mesmo não é uma atitude segura e muito menos uma atitude fácil, porque expõe não só as virtudes daquele que fala, mas também as suas fragilidades e os seus enganos. Se não se mede a verdade tão somente pelo verdadeiro ou pelo falso, talvez, mede-se pelo sujeito que se liga a esta, o sujeito em sua atitude de coragem neste próprio ato de fala. Então, produzir um discurso é sempre uma atitude arriscada, porque arrisca na exposição da verdade a integridade do sujeito que fala, a integridade de suas relações e a integridade de sua realidade.
O trabalho que aqui se encerra termina com a total sensação de incompletude do tema exposto. E a verdade aqui exposta não pode ser medida em termos da totalidade do que se poderia falar sobre a loucura, mas sobre o quanto se desejou falar de liberdade, de coragem, de crítica e de transgressão do sujeito louco. Desta forma, para medir os resultados de tal intento, é preciso confrontá-lo com ele mesmo, confrontá-lo com seus objetivos e com seus argumentos, confrontá-lo com tudo aquilo que foi capaz de dizer sobre si mesmo, sobre tudo aquilo que ele foi capaz de dizer sobre o seu desejo de dizer, confrontá-lo com a virtude daquele que o assume, confrontá-lo com a sua verdade.
Por isso, o que foi dito até aqui, diz muito do desejo em dizer ainda alguma coisa sobre a loucura, dizer aquilo que se tem vontade de dizer, dizer aquilo que se sente necessidade em dizer, dizer aquilo que se supõe não ter sido dito ainda, dizer aquilo daquela forma particular que nos dispomos a dizer, dizer de uma forma especial e singular que imaginamos dizer. E se este trabalho foi assentado num delírio que germinava desde muito tempo, parece que agora alucinar é um pouco dessa coragem em dizer o que resta. E mesmo com tudo que já foi dito e que poderia ter sido dito acerca da loucura, agora é apenas um decalque, apenas um instantâneo daquilo que ela pareceu ser naquele momento, apenas a imagem daquilo que se permitiu manifestar de tal experiência, experiência esta que está constantemente se estranhando consigo mesma e com quem a enxerga. Talvez essa tal experiência do delírio diga ainda alguma verdade sobre nós mesmos, sobre o mundo em que vivemos, sobre a realidade que vivenciamos, sobre o humano, e de todo o oculto que nele habita. Talvez?! Mas com certeza o ato de falar sobre este delírio diz muito daquele que fala, diz muito daquele que tem algo a dizer, diz muito da verdade que se tem a dizer e que se quer dizer. O delírio diz muito daquele que o assume enquanto delírio, na concretude densa e penetrante dele. No delírio, na implacável materialidade do louco, habitam todos os possíveis, habitam todos os escândalos da verdade e da razão. Ou seja, o louco é a materialidade histórica daquilo que escapava das convenções pelo escândalo do verdadeiramente outro.
Logo, este trabalho pretendeu ser um pouco do delírio para que a vida não sufoque, para que a incontornável verdade da vida não sufoque, para que não se sufoque a vida com a verdade. E este ensaio pretende mostrar, agora sem justificativas de datas, páginas ou conceitos, a importância de assumir esta verdade, de assumir este delírio como forma de discurso, como forma de uma parresía do desatino que não cansa de zombar de nossa pretensa racionalidade, que não cansa de zombar de nossa egocêntrica racionalidade, que não cansa de sua zombaria cínica. Daí então que este ensaio pretende ser a verdade corajosa do desatino que apresento não só para mim, mas para todos os outros aqui presentes. Ensaio que quer ser a coragem delirante de dois anos de angústias e de inseguranças, mas também de sucessos e de aprendizados. Dois anos que aprendi que pensar é alucinar, que pensar é enxergar na escuridão do seu tempo, que pensar é enxergar a implacável radicalidade do outro, que pensar é cartografar e imaginar utopias concretas, que pensar é pensar na diferença, seja dialética ou virtual. Nestes dois anos que hoje se encerram, me dei conta que pensar é mesmo travessia e naufrágio. Naufrágio tardio de escrever sobre o discurso do louco como uma potência crítica a partir da dimensão da parresía e a importância da verdade da loucura num contexto ainda a desbravar.
É bem verdade que aprendi que a verdade não é tudo o que se diz dela, não é a totalidade e nem a completude do que pretensamente se pode dizer sobre ela. Mas aprendi que toda verdade dita é completa, é completa no desejo e na coragem de dizer, é completa no momento de sua enunciação, é completa naquilo que tem de acontecimento, de crítica e de delírio. Assim foi minha leitura da parresía e da loucura em Foucault. Daí que a verdade da loucura não pode ser o erro, não pode ser o engano do irracional, senão que o irracional só pode ser a cegueira das luzes que encobrem a singularidade desta crítica imanente que habita o discurso do louco. Cegueira de uma história de violências que fizeram da loucura seu objeto e sua projeção, projeção encarcerada na doença, no desvio e no transtorno. Sim, no transtorno, no transtorno da disrupção da crítica radical, da crítica sombria e marginal do louco cínico, do louco parresiasta, que se aproxima e se afasta das ordens institucionais.
O louco como cínico é o escândalo da verdade que ele materializa, e representa às margens de uma cultura que pretendeu superar-se na razão, mas deixou de fora de seu projeto a alteridade do louco como outras tantas formas de diferença.
Por isso não concebo a loucura como conceito e nem tive a pretensão de aqui fazê-lo. A loucura só pode ser descrita pelos sujeitos reais que a vivem, pelas pessoas sãs ou não que se relacionam com a particularidade desta experiência singular do humano. Mas não como sua natureza ou como sua ancestralidade primitiva ou infantil, senão como forma de reconhecer que tudo aquilo que é do humano não me é estranho, porque a estranheza da loucura é apenas mais uma face dessa alteridade desarrazoada que ocupou os imaginários humanos desde a Antiguidade. E mesmo a ingenuidade da loucura ou a sua violência irruptiva não são estranhas. Há na loucura muito dessa sensação de estranhamento e desacomodo, e mesmo os conceitos sofrem com tal tipo de percepção. Os conceitos se desacomodam em relação à loucura na impossibilidade de conter numa estrutura teórica estável a sua força crítica. Por isso, os loucos devem ser vistos prioritariamente como sujeitos reais com suas presenças reais, com suas falas reais, com seus discursos éticos e políticos reais e materiais assim como o são na parresía. No entanto, é preciso levar em consideração que a loucura e o louco respondem sempre por lugares multiformes, lugares polimorfos na pluralidade que apresentam, então, capturar essa imagem no conceito, sempre abre uma brecha ao contraditório de si mesma, onde a definição de doença mental tentou dar um contorno estável a uma instabilidade histórica da estranheza humana. O conceito de doença mental dá a universalidade teórica que esse limite impede, mas também reduz o louco à identidade da doença.
Assim, este problema de cultura vem constituindo tanto a loucura quanto a doença mental através das épocas e culturas distintas – por meio ou de uma política do enclausuramento e a sua contenção física, simbólica e subjetiva ou de uma pluralidade multiforme e a sua liberdade desarrazoada um tanto mística, divinatória ou profética – e mostram os horizontes indeléveis que a força desse fenômeno tem ocupado nas paisagens concretas ou imaginárias de nossa história. Tal força desse fenômeno é disruptiva, múltipla e disforme, marginal por sua natureza estranha que ao longo da história foi muito mais estranha apenas a si mesma. A grande política de separação que um dia foi capaz de distinguir pela negatividade toda espécie de fenômenos positivos produtos de sua própria lógica de captura, enclausuramento, contenção e tutela, não é capaz de dizer a verdade sobre a totalidade do desatino sem que se contraste com ele o reflexo de seu conteúdo desalojado. Ou seja, de como a loucura é produzida por sua cultura que lhe dá o estatuto de não-pertencimento. O ser da loucura é um ser no negativo e apesar da busca de toda a positivação sob uma mesma concepção de doença mental, toda a afirmação de loucura é a afirmação de uma virtualidade despojada de seu conteúdo, mas investida de todas as potencialidades em si mesmas não-loucas. Por isso mesmo o louco é toda medida do possível, toda possibilidade de efetuar em si o que ainda não é de sua cultura, tudo aquilo que a ela não se integra, a virtualidade do que ainda não tem lugar. Desta forma, antes mesmo do lugar de acossado pela razão soberana, o louco é o conservado, o preservado, é aquele que guarda em torno de si as virtualidades ainda não cristalizadas, ainda não capturadas sob a forma do racional, da norma, da média, do conceito e etc.
O que se desenha no horizonte trágico da loucura é todo um processo de governamentalização da vida que não se limita apenas ao louco, pois atingiu também as mulheres, os criminosos, os homossexuais, os negros, os indígenas e toda espécie de diferença marginal ao mesmo. E a psiquiatria, a medicina e as formas mais apuradas do poder psiquiátrico vigiam essa fronteira asséptica que mantém imaculada a identidade da exterioridade rebelde. De maneira que o louco está inserido em uma universalidade genérica da loucura/doença, mas afastado da universalidade social dos outros não-loucos. É como se o louco fosse aquele sobrecarregado de conteúdo, ou seja, de toda a conceitualização e classificação patológica e moral em si, mas, ao mesmo tempo, uma figura no negativo da diferença que representa para as convenções sociais. Logo, este processo histórico de positivação da loucura a partir do aparato conceitual psiquiátrico como uma classificação nosológica, apenas reforça ainda mais na identidade da doença a exceção à norma que a loucura constituiu.
O problema da localização histórica da loucura enquanto um fato de civilização não deve ser considerado apenas como um problema sociológico que dependerá exclusivamente da inclusão ou da exclusão de tal sujeito do âmbito público. O problema que está no centro dessas dinâmicas envolve fundamentalmente as produções de saberes e a institucionalização de conhecimentos sobre a loucura a partir de mudanças de racionalidades filosóficas e científicas em torno dela que ainda se sustentam sob justificativas moralizantes. Por isso é um problema ético e político. O que nos coloca diante de um processo de reconhecimento ainda maior no âmbito social que acarreta a pertinência do louco dentro de uma sociedade e a sua liberdade de atuação como qualquer outro ator ético e político. Dessa forma, é importante atentar para a pertença social do louco, que depende, em maior medida, da pertinência da tensão produzida pela loucura no contexto social, que desacomoda a razão apenas pela excepcionalidade de sua presença. Por isso que, a mirada de uma prática ética e discursiva da loucura num contexto político é fundamental até para a análise histórica dessa experiência devido aos próprios deslocamentos internos sofridos por essas figuras da loucura.
Por este modo, o louco é um sujeito de fronteiras, das suas próprias fronteiras e das fronteiras da razão e da loucura, fronteiras do que é ser louco. O louco parresiasta é esse sujeito de fronteiras e as fronteiras – assim como as definimos como aquilo que, apesar das convenções entre as partes – é sempre subvertido e ultrapassado em seus marcos históricos. Marcos da verdade, da crítica, da coragem da verdade daquele que entra no jogo arriscado da enunciação do discurso. Cruzar fronteiras é como desafiar certa ordem, mesmo que essa ordem não seja tão autoritária como em algumas fronteiras transnacionais que conhecemos. O desafio do louco parresiasta é desafiar a própria definição de loucura que o cerca e que muitos de nós endossamos como naturalidade patológica, sendo hoje inconcebível outra definição de loucura além da do sofrimento psíquico inerente às doenças mentais. Por isso, o louco não só é capaz de um discurso livre e crítico inerente dessa atividade discursiva parresiástica, mas também é capaz de invenção e de afirmação de um sentido completamente outro de ser louco no mundo. Mas claro que essa afirmação de ser outro louco como forma completamente distinta da que estamos acostumados, pode passar pelo abandono da própria categoria e terminologia de loucura, de louco, de ser louco enquanto uma identidade ontológica. Já que na loucura, sua ontologia se submete a sua história de divisões, de exclusões e de discursos.
Sendo assim, o louco, como mais um ator nesse jogo de discursividades, expressa de forma particular num modo de dizer e atuar a verdade que lhe é característico como figura da alteridade. A figura do outro é fundamental para a parresía, sendo na relação com esse outro que o discurso se efetiva de fato, não sendo tão somente um solilóquio ou um monólogo interno de quem profere a sua verdade. Mas uma relação de generosidade e de coragem entre aquele que apresenta a sua verdade ao outro que a recebe e que se constitui por ela. A relação com a verdade dita e o sujeito enunciador se dá em um contexto social, se dá sob a escuta de um outro capaz de reconhecimento daquele discurso e capaz de resposta a este. Essa relação com a alteridade é fundamental não só como uma condição dessa noção política no sentido da esfera pública do discurso, mas também fundamental para a relação ética que se estabelece entre os personagens desse processo de subjetivação.
O trabalho aqui pretendeu apontar alguns breves paralelos e semelhanças entre a loucura e a parresía como forma de realocar o louco dentro de um contexto discursivo onde a sua particular forma de verdade seja de fato efetivada como discurso. E a parresía, na forma da coragem da verdade ou do escândalo da verdade, enquanto uma dramática do discurso verdadeiro, ou seja, enquanto prática possível, não apenas discursiva, mas também como modo de vida e de experiência marginal e transgressora, pôde oferecer condições teóricas para esse projeto. Mas a intenção que encerra esse projeto foi a de abrir brevemente uma nesga de liberdade de fala, uma liberdade de tudo dizer como na parresía, onde seja possível falar de verdade sem que se remeta à verdade do conhecimento, sem que se remeta à verdade das convenções científicas como verdades estáticas e naturais, sem que se remeta a um processo de dominação como fatalismo inescapável do paradigma psiquiátrico. Mas entender que como na parresía, a verdade da loucura é uma relacional entre o sujeito e a sua experiência de subjetivação que o constitui e constitui os outros com a presença e exposição de uma verdade acontecimental.
Cada vez mais as práticas contra-hegemônicas se desenham num futuro possível de luta e resistência política, sejam estas práticas, práticas de grupos vistas nos movimentos sociais ou pequenas práticas cotidianas que partam do pensamento-ação como devir-revolucionário para abrir novos caminhos. Todas elas reúnem um amplo espectro de atuação política muito diferente das formas tradicionais do âmbito político institucional. Cada pequena crítica, cada pequeno desconcerto já é um início válido para mudanças subjetivas significativas no espectro de novas políticas, entendendo como político tudo aquilo que tem de verdadeiro na presença crítica da diferença. A verdade se torna então palco de lutas e como tal deve ser radicalizada em sua potência crítica, isto é, é preciso que tenha movimento, ação e pensamento coadunados numa experiência ética e política indissociável. E se nunca se pensou o suficiente, sempre haverá algo para pensar, pois o pensamento é ação da política também, ação da interioridade à exterioridade, assim como um falar a verdade sem medo das ulteriores consequências e produções. E quantas pessoas na história da humanidade já não perderam a vida por falar a verdade? Por isso há algo de crítico neste ato, porque incomoda alguém, porque desacomoda uma ordem, porque desloca uma relação de poder. Logo, incomodar é agir sobre o desacomodo, provocá-lo cada vez mais a fim de deslocar as ordens dos seus lugares de saber e de poder predominantes para que se possa criar o diferente. Assim é o escândalo da verdade que incomoda, e quem se incomoda com ele vive na mentira, na falsidade da lisonja e da retórica protegida dos perigos dessa exposição do dizer. Deste modo, é preciso viver a verdade, mas não sob a luz de uma verdade incandescente e ofuscante como da verdade-conhecimento que a tudo revela, porém, viver a verdade com tudo aquilo que ela tem de sombra e de margem, assim como o despojamento cínico, o despojamento como transvaloração das ordens e das convenções sociais. É preciso viver a verdade-acontecimento naquilo que ela tem de transgressão e de coragem do verdadeiro como nova experiência de relação social e política.
Assim, o trabalho que hoje é defendido termina completamente incompleto de tudo que poderia dizer, e mesmo no desejo de tudo dizer, no desejo de falar tudo, tudo ainda está incompleto. Contudo, hoje dou por encerrado este percurso na filosofia, não sem desejo de ficar, não sem desejo de voltar, mas com uma imensa impossibilidade de permanecer. Então, se comecei este percurso dizendo que quem produz um discurso se arrisca, hoje reforço dizendo que não foi sem riscos que este trabalho se encerra e se faz reverberar por outras bandas. Pois sendo a deriva a metáfora mais comum para descrever e se relacionar com o desatino, haveria nesta um tipo de sentimento de constante flutuação e deslocamento entre o estático e o mutante, por isso a dificuldade em permanecer. Dificuldade em permanecer o mesmo.
27 de março de 2017
20 março, 2017
Loucura
Em breve defenderei minha dissertação sobre a loucura, sobre aquilo que tenho vontade de dizer sobre a loucura, com tudo aquilo de verdade e honestidade desses anos que venho trabalhando com esse tema. Embora tenha baseado minha dissertação em Foucault, acho que a melhor pessoa pra falar de loucura hoje em do ponto de vista filosófico é Peter Pelbart, cada texto e cada ensaio dele me tocam muito naquilo que sinto sobre a loucura, sobre o desatino, sobre toda experiência marginal que foge dessa instituição entendiante de se ter razão o tempo todo. Sabem, isso é uma das coisas que mais me decepcionaram na filosofia acadêmica. Não que eu já não esperasse por isso, até porque eu era um leitor atento a Nietzsche. Toda a crítica que fiz ao racionalismo da psicologia no meu tcc foi baseada em Nietzsche e um pouco em Foucault, mas aprendi que a razão é ainda algo muito soberano na filosofia, isso no sentido de que na filosofia, mesmo as perguntas devem ser feitas da forma certa, não permitindo qualquer delírio. É por isso que autores como Deleuze ainda são muito mal vistos dentro dos departamentos de filosofia, mas mesmo quando é aberta uma nesga de ar nesses departamentos (mofados em alguma medida), o movimento de institucionalizar um pensamento e o canonizar é a regra corrente na academia até hoje. A loucura é aquilo que foi durante muito tempo institucionalizada, tutelada, medida, avaliada, governada por essa mesma lógica da ordem dos discursos. É a lógica de uma razão totalizadora que define o seu limite para poder governá-lo. Mas não acredito que esse limite seja tão rígido quanto nos fazem pensar as convenções da racionalidade, sejam elas médicas, científicas ou filosóficas. Racionalidades que transformaram a loucura em um conceito e a partir daí puderam neutralizar todo o risco inerente a esta instância humana que já foi tida como mágica ou mística. Sendo que a loucura como doença mental sequer foi uma regra na cultura em que vivemos, nossa cultura ocidental, essa dos europeus brancos e cheio de doenças. Até a Renascença a imagem mística da loucura habitava a imaginação de artistas e filósofos, mas isso foi mudando e hoje apenas o distúrbio da doença impera. E numa sociedade que não suporta se ver doente, isso é um baita de um problema. Autores como Laing e Cooper, Basaglia, Szasz tem mostrado como os interesses morais e econômicos têm se relacionado com o modo com que tratamos a loucura ao longo do tempo. Eu diria que desses quatro, talvez Szasz seja o mais radical em apontar pra definição de doença mental como um problema moral como uma invenção de nossa sociedade. Esta perspectiva não é muito distante da perspectiva de Foucault em Doença mental e Psicologia, mas o filósofo francês abandona cada vez mais essa problematização ao longo dos anos, se concentrando na questão das relações de poder que atravessam o louco, o médico e o manicômio. Sabem, recentemente eu vi o filme da Nise da Silveira e não gostei muito. Eu conheço a história da Nise desde a graduação e mais intensamente durante meu período na iniciação científica onde trabalhei com histórias de pessoas com esquizofrenia. Vejam, minha base pra falar de loucura não começou ontem e venho pensando criticamente sobre o assunto há pelos menos uns quatros anos. Não gostei muito do filme porque achei ele meio ingênuo no início, embora a atuação dos loucos refletisse um pouco dessa estranheza que se tem quando se trata da loucura. Comparado à ingenuidade inicial que tive com o filme da Nise, destaco a força, um pouco abafada em algumas partes é verdade, do documentário A loucura entre nós. É um documentário rico, porém não deixa clara sua intenção em falar de loucura e os momentos que mais me interessaram foram os que podemos ver a dinâmica de relações entre as pessoas dentro do hospital psiquiátrico. Também me lembro do impacto que tive quando vi pela primeira vez Estamira e como aquilo mudou minha perspectiva da relação com a loucura dos outros, com tudo aquilo de verdade que a loucura dos outros tem. Ainda não assisti o documentário O Holocausto brasileiro, porque no início tive um receio quanto à minha organização, embora não pareça, é preciso ter realidade dos nossos limites e de nossos receios. Com todas as experiências que tive com a loucura até hoje, algumas parcas e outras mais teóricas, sempre me senti fortemente afetado com tudo. Sabem, afetos mesmo, aqueles de sentir no corpo. Esse tipo de afeto não interessa à razão que tomou conta dos discursos sobre a loucura. Para ela, esses afetos são desorganizadores e não devem ser levados em consideração. Em algumas situações dessa minha caminhada tive essa experiência de ter que ignorar qualquer relação que ultrapassasse a neutralidade do conceito, da profissão, do papel social que ali eu estava representando quase como que performativamente, porque era assim que tinha que ser, nada além disso. Mas aprendi com essas experiências e hoje as uso para escrever o que supus ser uma dissertação de filosofia. Então quando eu defender lá no dia 27 minha dissertação, não estarei falando de Foucault e de sua filosofia, de seus conceitos, de seus cânones, de seus comentadores e da tradição que o cerca, estarei falando de mim, estarei falando de todos esses anos que passaram e que se prolongaram, que me provocam a falar de algo que tem dito muito mais de mim do que qualquer outra coisa nesses anos todos. É preciso ter a coragem da verdade pra falar sobre loucura, é preciso ter coragem pra tal tipo de delírio num lugar onde impera as luzes da razão. Escrevi isso agora porque me deu vontade e assim o fiz.
Março de 2017.
13 fevereiro, 2017
13 de fevereiro de 2017
Cada vez mais eu tenho me aproximado da percepção de que o Facebook é a terra (bem concreta em até certa medida) das falsas polêmicas, das falsas problematizações, das falsas desconstruções, dos falsos essencialismos e até dos falsos simulacros. Pois, explico, a brevidade dos pontos críticos levantados não permite que tais temas polêmicos sejam de fato esgotados na sua dimensão de polêmica e passem a ser pensados dentro de uma determinada estrutura de reflexão, de crítica, de análise que se dê pelo menos óbvio, mas também, pelo mais descaradamente simples e aparente. E a questão aqui não é a da informação ou do conhecimento (de quem tem ou não tem essas coisas), mas a da desconfiança e do distanciamento em relação ao problema. Um mecanismo muito comum do fb é a convocação para um rápido posicionamento, para uma rápida opinião, daí que todo mundo se sente impelido a fazer um julgamento das manchetes, dos enunciados pequenos, dos tweets. Tipo, como quando aparece um post sobre o uso de anticonvulsivantes no tratamento da bipolaridade. Logo aparecem os especialistas que detém o conhecimento sobre o assunto e dissertam sobre ele, mas sempre com um background de opinião, fora o aspecto moral de seus discursos; e também aparecem aqueles leigos dispostos a uma boa opinião, os opiniáticos de plantão. Enfim, esse exemplo é fictício, mas a questão é que as polêmicas de facebook ficam por aí mesmo, ficam na dimensão de polêmicas como se fossem problemas, mas não são. Quer dizer, são, mas também não são, por que são problemas que surges pela própria polêmica em si, em função dela e sequer são discutidos fora disso. Por isso é cada vez mais difícil discutir no facebook, a terra dos falsos problemas, dos falsos dilemas.
(Não disse em nenhum momento que existem problemas e dilemas verdadeiros)
11 fevereiro, 2017
Poema de sábado, 11 de fevereiro de 2017
Faz tempo que não escrevo um poema, um
poeminha que seja
E não por falta de desejo, por falta da angústia do dizer,
Mas porque me tiraram alguma coisa,
me tiraram meu pouco pedaço de carne,
meu pouco pedaço de corpo
e vivo assim descorporificado,
desfragmentado.
Vivo assim meus dias vagando entre o que
fui e o que não sou
E não tem dia sequer que não pense no
tempo das almas,
No tempo latente entre o presente e o
futuro de uma emergência insólita.
Não há dia que eu não sonhe com o
abismo, com o inconsciente abismo de nós mesmos.
E quão profundo é o abismo sobre os
céus numa redenção miraculosa de tédio e fumaça?
Só a poesia, um pouco sem graça, congela
no papel a angústia do poeta.
Antes fosse uma natureza calma e
promíscua que regesse as leis da descorporificação,
Mas é o retorno, é o abalo das horas insólitas que fazem do homem semente e relógio.
02 fevereiro, 2017
Deus, uma dúvida
Algumas pessoas pensam que sou ateu, talvez por causa da filosofia, do comunismo ou de Nietzsche, não sei. Só sei que não sou, não sou ateu. Mas também não sou religioso, o que é bastante diferente na minha opinião. Penso que as religiões são invenções humanas, discursos humanos históricos e culturalmente localizáveis com suas particulares tramas de sentidos. Algumas destas tramas não fazem nenhum sentido atualmente para a minha existência, mas não quer dizer que não devo respeitá-las na singularidade e na diferença que estas constituem. Talvez por ter tido uma formação religiosa assentada no sincretismo de matrizes religiosas diversas, pude ver um pouco delas com certa exterioridade, certo olhar crítico que me fez distanciar, mas não execrá-las como muitos o fazem. Nietzsche diz que a nossa crença na ciência ainda é uma crença tal como a da metafísica religiosa. Seja qual for a ciência, o culto delas é quase um culto religioso com seus abades e tudo mais. Apenas troca-se o conceito de Deus pelo Deus conceito e ficamos por aí mesmo. Enfim, não foi por isso que comecei esse texto e nem tenho pernas para desenvolver mais sobre isso. O que eu quis fazer mesmo é um tipo de esclarecimento público. Mas também não me perguntem pelo conceito ou ideia que tenho de Deus, ainda não sei, é sempre uma dúvida, uma dúvida não no sentido cartesiano do termo, mas uma dúvida tão somente.
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