Em breve defenderei minha dissertação sobre a loucura, sobre aquilo que tenho vontade de dizer sobre a loucura, com tudo aquilo de verdade e honestidade desses anos que venho trabalhando com esse tema. Embora tenha baseado minha dissertação em Foucault, acho que a melhor pessoa pra falar de loucura hoje em do ponto de vista filosófico é Peter Pelbart, cada texto e cada ensaio dele me tocam muito naquilo que sinto sobre a loucura, sobre o desatino, sobre toda experiência marginal que foge dessa instituição entendiante de se ter razão o tempo todo. Sabem, isso é uma das coisas que mais me decepcionaram na filosofia acadêmica. Não que eu já não esperasse por isso, até porque eu era um leitor atento a Nietzsche. Toda a crítica que fiz ao racionalismo da psicologia no meu tcc foi baseada em Nietzsche e um pouco em Foucault, mas aprendi que a razão é ainda algo muito soberano na filosofia, isso no sentido de que na filosofia, mesmo as perguntas devem ser feitas da forma certa, não permitindo qualquer delírio. É por isso que autores como Deleuze ainda são muito mal vistos dentro dos departamentos de filosofia, mas mesmo quando é aberta uma nesga de ar nesses departamentos (mofados em alguma medida), o movimento de institucionalizar um pensamento e o canonizar é a regra corrente na academia até hoje. A loucura é aquilo que foi durante muito tempo institucionalizada, tutelada, medida, avaliada, governada por essa mesma lógica da ordem dos discursos. É a lógica de uma razão totalizadora que define o seu limite para poder governá-lo. Mas não acredito que esse limite seja tão rígido quanto nos fazem pensar as convenções da racionalidade, sejam elas médicas, científicas ou filosóficas. Racionalidades que transformaram a loucura em um conceito e a partir daí puderam neutralizar todo o risco inerente a esta instância humana que já foi tida como mágica ou mística. Sendo que a loucura como doença mental sequer foi uma regra na cultura em que vivemos, nossa cultura ocidental, essa dos europeus brancos e cheio de doenças. Até a Renascença a imagem mística da loucura habitava a imaginação de artistas e filósofos, mas isso foi mudando e hoje apenas o distúrbio da doença impera. E numa sociedade que não suporta se ver doente, isso é um baita de um problema. Autores como Laing e Cooper, Basaglia, Szasz tem mostrado como os interesses morais e econômicos têm se relacionado com o modo com que tratamos a loucura ao longo do tempo. Eu diria que desses quatro, talvez Szasz seja o mais radical em apontar pra definição de doença mental como um problema moral como uma invenção de nossa sociedade. Esta perspectiva não é muito distante da perspectiva de Foucault em Doença mental e Psicologia, mas o filósofo francês abandona cada vez mais essa problematização ao longo dos anos, se concentrando na questão das relações de poder que atravessam o louco, o médico e o manicômio. Sabem, recentemente eu vi o filme da Nise da Silveira e não gostei muito. Eu conheço a história da Nise desde a graduação e mais intensamente durante meu período na iniciação científica onde trabalhei com histórias de pessoas com esquizofrenia. Vejam, minha base pra falar de loucura não começou ontem e venho pensando criticamente sobre o assunto há pelos menos uns quatros anos. Não gostei muito do filme porque achei ele meio ingênuo no início, embora a atuação dos loucos refletisse um pouco dessa estranheza que se tem quando se trata da loucura. Comparado à ingenuidade inicial que tive com o filme da Nise, destaco a força, um pouco abafada em algumas partes é verdade, do documentário A loucura entre nós. É um documentário rico, porém não deixa clara sua intenção em falar de loucura e os momentos que mais me interessaram foram os que podemos ver a dinâmica de relações entre as pessoas dentro do hospital psiquiátrico. Também me lembro do impacto que tive quando vi pela primeira vez Estamira e como aquilo mudou minha perspectiva da relação com a loucura dos outros, com tudo aquilo de verdade que a loucura dos outros tem. Ainda não assisti o documentário O Holocausto brasileiro, porque no início tive um receio quanto à minha organização, embora não pareça, é preciso ter realidade dos nossos limites e de nossos receios. Com todas as experiências que tive com a loucura até hoje, algumas parcas e outras mais teóricas, sempre me senti fortemente afetado com tudo. Sabem, afetos mesmo, aqueles de sentir no corpo. Esse tipo de afeto não interessa à razão que tomou conta dos discursos sobre a loucura. Para ela, esses afetos são desorganizadores e não devem ser levados em consideração. Em algumas situações dessa minha caminhada tive essa experiência de ter que ignorar qualquer relação que ultrapassasse a neutralidade do conceito, da profissão, do papel social que ali eu estava representando quase como que performativamente, porque era assim que tinha que ser, nada além disso. Mas aprendi com essas experiências e hoje as uso para escrever o que supus ser uma dissertação de filosofia. Então quando eu defender lá no dia 27 minha dissertação, não estarei falando de Foucault e de sua filosofia, de seus conceitos, de seus cânones, de seus comentadores e da tradição que o cerca, estarei falando de mim, estarei falando de todos esses anos que passaram e que se prolongaram, que me provocam a falar de algo que tem dito muito mais de mim do que qualquer outra coisa nesses anos todos. É preciso ter a coragem da verdade pra falar sobre loucura, é preciso ter coragem pra tal tipo de delírio num lugar onde impera as luzes da razão. Escrevi isso agora porque me deu vontade e assim o fiz.
Março de 2017.
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